Autora:
Walkyria Carvalho Nunes Costa
Falar de relações de afetividade não é necessariamente o
discurso mais agradável de se desenvolver, especialmente se nos extremos de
relações como esta estão pai e filho, em meio a um mar de omissões, descasos e
irrefutável desprezo. Trata-se de um delicado tema, que envolve não somente
direitos e deveres, mas questões morais e éticas, que habitam (ou deveriam
habitar) o consciente e o inconsciente de cada ser humano, sem que, para isto,
houvesse a necessidade de provocação da parte sucumbente, qual seja, a prole.
Os pais possuem, em relação aos filhos, o dever de sustento,
de cuidado, de zelo, preservados pela Constituição Federal de 1988, através do
art. 227. Não obstante a existência dos mencionados deveres objetivos e
subjetivos de cuidado, é verídica a informação de que muitos lares são compostos
de famílias monoparentais, situação que impulsiona um dever de provimento das
mais básicas subsistências às diversas necessidades de crianças e adolescentes,
muitas vezes suportadas por apenas um dos pais, geralmente o que detém a guarda.
Não subjugando a questão do apoio material, até mesmo porque
não se discute apoio financeiro em abandono afetivo, sabe-se que, com o
instituto criado em 1976 – o divórcio – muitos ex-casais têm o entendimento de
que esta ruptura familiar enseja também o rompimento dos laços com a prole,
principalmente com a implementação de guarda exclusiva, onde o parente
desprovido de guarda ignora o fato de um dia ter gerado um filho. Pais que
decidem pôr termo ao relacionamento, muitas vezes põem termo também ao vínculo
com os filhos, podendo lhes causar um incontestável trauma de abandono. Ser
criado sem pai pode não ser necessariamente um trauma, especificamente no
contexto da necessidade material – e muitas vezes não é, pois o responsável que
detém a guarda daquela criança ou daquele adolescente (geralmente a mãe) muitas
vezes pode suprir toda e qualquer ausência; a questão é ter a consciência de que
o pai existe, está vivo e exerce a rejeição por livre escolha, muitas vezes de
maneira vil e ardilosa.
Haveria, no Brasil, uma tendência coerente em se admitir
ações de reparações de dano moral, quando o pai afetivamente abandona seu filho,
deixando impresso em seu caráter a mácula do desprezo, não fosse a decisão do
STJ em refutar a idéia de reparação da responsabilidade civil. O abandono
afetivo é tão prejudicial quanto o abandono material. Ou mais. A carência
material pode ser superada com muito trabalho, muita dedicação do genitor que
preserve a guarda do infante, mas a carência de afeto corrói princípios, se
estes não estão seguramente distintos na percepção da criança. É o afeto que
delineia o caráter e, como é passível de entendimento coletivo, é a família
estruturada que representa a base da sociedade. É comumente a falta de estrutura
que conduz os homens aos desatinos criminosos, ao desequilíbrio social. Não que
seja de extrema importância manter os pais dentro de casa, ou obrigá-los a amar
ou a ter envolvimento afetivo contra sua própria natureza, mas é de fundamental
valoração a manutenção dos vínculos com os filhos e a sua ausência pode
desencadear prejuízos muitas vezes irreparáveis ao ser humano em constituição.
Decorre deste problema um desencadeamento de muitas doenças
físicas, que têm gênese também nas suas fugas em não se ‘re-conhecer’ como
pessoa, tamanho o abalo de sua auto-estima. A Psicologia também tenta explicar a
falta do ente paterno, quando diz que o homem ou a mulher desprovidos da
presença de um pai, geralmente buscam em pessoas de mesmo perfil um amparo
psicológico, não se tratando, no entanto, de regra geral. Assim, recorrendo-se à
metáfora da folha de papel, o ser humano é como tal, de um lado o plano
físico-orgânico, de outro lado, o plano psicológico. Dois lados de uma mesma
pessoa, duas óticas conexas de um mesmo ente. Tanto que, se houver a perfuração
de um lado do papel, entenda-se perturbação psicológica do ser humano,
prontamente o outro também será afetado, pois conexos, compõem-se em partes de
um todo. Com isso, é possível demonstrar que a vida da pessoa é composta de uma
díade, e que, não pode ser compartimentalizada sob pena de se perder o humano em
sua integração pessoal
[01]. E continua Angeluci, sobre o tema, de
maneira bastante precisa: "a defesa da relevância do afeto, do valor do amor,
torna-se muito importante não somente para a vida social. Mas a compreensão
desse valor, nas relações do Direito de Família, leva à conclusão de que o
envolvimento familiar, não pode ser pautado e observado apenas do ponto de vista
patrimonial-individualista. Há necessidade da ruptura dos paradigmas até então
existentes, para se poder proclamar, sob a égide jurídica, que o afeto
representa elemento de relevo e deve ser considerado para a concretização do
princípio da dignidade da pessoa humana".
A maior parte dos comportamentos do ser humano é adquirida,
ou seja, algumas poucas atitudes são provenientes de traços da própria
personalidade, enquanto a maioria é construída ao longo da vida, quando o ser
humano tem contato com pessoas, objetos e conhecimento, seja este teórico ou
empírico. Traumas e maus tratos, mais precisamente o trauma de abandono afetivo
parental, imprimem uma marca indelével no comportamento da criança ou do
adolescente. É uma espera por alguém que nunca vem, é um aniversário sem um
telefonema, são dias dos pais/mães em escolas sem a presença significativa
deles, são anos sem contato algum, é a mais absoluta indiferença; podem-se
relatar inúmeras formas de abandono moral e afetivo, e ainda assim, o ser humano
continuará criando novas modalidades de traumas e vinganças pessoais, próprias
de sua vida desprovida de perspectivas e responsabilidades.
Inúmeras pesquisas vêm sendo realizadas, com o intuito de se
traçar um perfil de uma geração criada por um dos pais, onde o outro ignora a
existência do seu próprio filho. De fato, o prejuízo advindo desta atitude
impensada e desmedida vem atribuindo ao caráter dessas pessoas uma forte
barreira afetiva, espécie de defesa anti-social, no combate às mazelas do ser
humano. São feridas que não cicatrizam e, muitas vezes, alimentam uma
personalidade destrutiva e autopiedosa, baseada na ampla destruição da
auto-estima, sentimento infinitamente necessário para a convivência do ser
humano com os demais de sua espécie.
Auto-estima é o revestimento do caráter,
assim como a pele é o revestimento do corpo.
Estimando a valoração do prejuízo causado na construção do
caráter e da personalidade do menor, os tribunais vêm atribuindo a atitudes
desta envergadura uma posição coerente, no sentido de coibir o abandono afetivo
e super-responsabilizar um dos pais. Nas decisões, como é de se esperar, não são
encontrados mandamentos de convivência, ou atribuição forçada de estima e
carinho. No entanto, vêm-se admitindo decisões com ressarcimento moral desse
dano à auto-estima da criança e do adolescente, não como forma de abonar o
trauma e a decepção gerados nos filhos, porque estes têm valor inestimável, mas
para, de uma certa forma, gerar no genitor faltante um dever de restauração do
que foi perdido e maculado.
O Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais decidiu sobre
este entendimento, que "A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono
paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e
psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa
humana." Acrescenta ainda: "O princípio da efetividade especializa, no campo
das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (art.
1º, inciso III, da Constituição Federal), que preside todas as relações
jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional. No estágio atual, o
equilíbrio do privado e do público pauta-se exatamente na garantia do pleno
desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade
familiar. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o art. 227 da
Constituição expressa essa concepção, ao estabelecer que é dever da família
assegurar-lhe ´com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária´, além de
colocá-la ´à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão´. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à
sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. Assim,
depreende-se que a responsabilidade não se pauta tão-somente no dever alimentar,
mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos,
baseado no princípio da dignidade da pessoa humana."
Se dos danos materiais pode-se haver valoração de prejuízo,
de danos psicológicos, tamanho o prejuízo, estes não têm possibilidade de
aferição quantitativa. Trabalha-se, outrossim, no intuito de amenizar os danos
sofridos, pois estes são de difícil reparação. Nesta inteligente decisão, como é
possível observar, não há um mandamento sequer no intuito de impor uma obrigação
de fazer de conotação subjetiva: não se determina que o pai deva amar o filho,
dar atenção ao filho, ter afetividade para com seu filho. De forma alguma. Isto
jamais poderia ocorrer, pois das relações sociais ou das relações
inter-pessoais, somente o ser humano sabe até onde pode ir. Determina-se a
assunção de uma responsabilidade, que deveria já ter sido assumida, para
amenização de um prejuízo já causado, porque ter filhos deve ser uma bênção na
vida de um homem, mas também deve ser visualizado como um ônus, não somente
material, mas moral. As conseqüências do abandono de uma prole em nome da
liberdade de uma obrigação ‘tediosa’ de levar uma criança ao parque aos domingos
são difusas e muito maiores, muito mais profundas que uma simples falta a um
programa de férias. A falta de estrutura de uma família pode fazer gerar um
conflito interno no menor, que o faça tender a atitudes criminosas ou desvios
comportamentais, muitas vezes. Há sempre o risco de conduta agressiva por parte
de crianças em formação, quando notam a negligência sentimental do pai faltoso.
Ela se sente dando e nunca recebendo. E pode passar a vida toda pautando sua
existência no sentimento de desprendimento, para captação da simpatia e
aprovação das pessoas, no intuito de se fazer pertencer a algum grupo. Se o ser
humano normalmente necessita pertencer a algum núcleo, a criança negligenciada,
agora adulta, urge por aprovação social e para não cair nessas armadilhas
psicológicas que o mundo proporciona, o ser humano deve ser muito forte e
combatente, resistindo à tentação de se achar risivelmente absurdo. Eis a
necessidade de apoio psicológico, de ressarcimento de um dano que,
invariavelmente, nem teria dimensões, tamanho o prejuízo causado na vida de um
filho sem apoio paterno. Não se trata aqui de se estabelecer o vínculo forçado,
como a simulação de um sentimento de afeto, mas do reconhecimento de que
conviver é o fator normal, separar não é tão aceitável como as pessoas dizem,
sob a ótica dos filhos, e eles sofrem quando seus pais não lhe dão afeto.
A Constituição Federal determina o dever de sustento, mas
também o dever de preservação da saúde, o que inclui o equilíbrio psicológico
que se espera normalmente de uma pessoa que tenha estabilidade das relações
afetivas. Criança abandonada não é somente criança de rua e esse rótulo deve ser
extirpado, para que os tribunais comecem a enxergar o tamanho do prejuízo
causado pelo abandono moral do pai ausente.
O STJ, no
REsp 757.411-MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005,
entendeu de forma contrária, publicando sua decisão que, a seguir, se resume:
"Entendeu que escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter
um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a
indenização pleiteada." Somos obrigados a concordar com o relator e dizer que,
realmente, não há decisão judiciária no mundo que faça alguém sentir amor. Não
se trata de uma obrigação de fazer, ou pior, de sentir. Respeita-se, neste
diapasão, a posição manifestada pelo Ministro. A decisão favorável à
indenização, no entanto, abriria um grande precedente aos pais que geram e não
cuidam, às crianças que sentam horas em frente ao portão de casa à espera do
pai, que não chega no domingo, às crianças que não sabem o que é desenhar,
pintar, montar presentes para o dia dos pais e efetivamente entregá-los ao
destinatário. Essas crianças precisam de apoio psicológico, de acompanhamento,
pois fazem parte da secção anormal da criação no mundo, onde sabem que nasceram
de ambos os genitores, mas apenas um lhes dá ciência do que é ser família. Não
perderam o pai, mas o pai preferiu se perder deles, por espontânea escolha.
Todas as escolhas na vida têm prós e contras, e um pai ausente deveria suportar
o ônus financeiro de seu livre arbítrio, para que a Constituição Federal fosse
respeitada na literalidade de seus princípios.
Se há formas de se atribuir esta responsabilidade, então que
ele sinta o peso da mão da justiça dos homens sobre si, impondo-lhe o
ressarcimento devido. De alguma maneira, está-se colocando em discussão não uma
decisão ou um mandamento constitucional apenas, como se isso já não fosse
suficiente, mas direitos de crianças e adolescentes que um dia estarão nestes
Tribunais, utilizando seus conhecimentos e sua experiência de vida para a
construção de um mundo melhor. Ou não.
Fonte: http://jus.com.br/revista/texto/12159/abandono-afetivo-parental